segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Avanços conservadores em proposições, marcos legais e práticas judiciais: afetando a proteção de direitos de crianças , adolescentes e famílias?

No último dia 20 de outubro a AASP Brasil acompanhou mais uma Atividade Programada “o Serviço Social na área sociojurídica”, organizado pelo Programa de Pós Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. O tema deste encontro foi “Avanços conservadores em proposições, marcos legais e práticas judiciais: afetando a proteção de direitos de crianças , adolescentes e famílias?” e as palestrantes foram a assistente social aposentada do TJ-SP e coordenadora da ATP, Eunice Fávero e pela assistente social judiciária Rita de Cássia Oliveira. Acompanharam o encontro nossa vice-presidente, Cintia Silva e alguns associados.

“Pensamos neste tema por conta da conjuntura que estamos vivendo de tantos retrocessos. Existem inúmeros projetos, inúmeras novas legislações que têm prejudicado diretamente crianças e adolescentes e famílias da população pobre”, expôs Eunice. A professora falou sobre a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído na década de 90, e que coloca a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, uma visão diferente do que havia anteriormente em termos de legislação. “São direitos que se aplicam a todas as crianças independente da condição social”. No entanto, embora o ECA tenha estabelecido que a responsabilidade pela garantia dos direitos de crianças e adolescentes seja tanto do estado quanto da família e da sociedade, o que vemos ainda hoje é que a cobrança está muito mais direcionada à família, estado e sociedade pouco têm sido chamados a olhar pela proteção dos mais jovens.

Adoção: A conta que não fecha
Eunice falou sobre as inúmeras propostas para agilizar os processos de adoção e a conta que não fecha já que muita gente quer adotar, mas a maioria das crianças não é adotada. Por quê? Para a professora a resposta é simples. A maioria dos pretendentes à adoção querem crianças pequenas, brancas, sem problemas de saúde e sem irmãos, o que difere muito da realidade das crianças que esperam por uma chance de viver em família.

O que se percebe atualmente é uma crescente pressão para destituir o poder familiar de famílias pobres para que seus filhos possam ser colocados para adoção por famílias mais abastadas. “Quem são estas famílias que sofrem esta pressão? São pessoas invisíveis. Ouvimos falar das crianças acolhidas, mas não ouvimos falar da situação de suas famílias”, expôs Eunice. Pesquisas realizadas sobre os processos judiciais de destituição do poder familiar na cidade de São Paulo dão conta que “estes pais e mães quase sempre não possuem qualquer perspectiva de vida digna, estão sem vínculos de proteção (social e familiar). São totalmente invisíveis. Muitos sequer foram localizados para entrevistas, defesas e audiências. São ‘descartáveis’ para a sociedade”.

Neste contexto da realidade brasileira a adoção surge como uma “salvação” para as crianças oriundas destas famílias. O Brasil prioriza o imaginário da preocupação com as crianças do que as políticas públicas de atendimento às famílias que possibilitariam a convivência familiar e comunitária destas crianças junto à sua família de origem.

O simbolismo da roda dos expostos permanece
Rita, que há mais de 20 anos atua no Judiciário paulista e que trabalhou a temática durante seu mestrado e doutorado também percebeu desde cedo que embora a pobreza por si só não possa justificar o abrigamento de crianças e adolescentes, é a violação de direitos básicos, em geral por parte do poder público, o principal motivo de crianças e famílias pobres ingressarem de alguma forma no Sistema de Justiça.

A história brasileira mostra que desde sempre se priorizou o afastamento de crianças pobres de suas famílias de origem. A assistente social Aldaiza Sposati disse certa vez que a protoforma dos abrigos se deu já na colonização, com os muchachos, onde as crianças indígenas eram catequizadas. “A partir daí já temos um modelo de ruptura do convívio com a família”, expôs Rita.

Crianças criadas por outras famílias sempre fizeram parte da realidade brasileira e isso aparece com força em algumas legislações, como por exemplo, o Código de Menores de 1927.

Para Rita o paradigma da roda dos expostos é ainda muito forte na história da atenção à criança brasileira. O simbolismo daquele mecanismo parece persistir ainda nos dias atuais: coloca a criança, vira a roda e fica para o lado de fora toda a história da sua entrega e desta realidade social que motivou esta entrega. Este paradigma permanece na legislação atual que prioriza a agilização da destituição do poder familiar e do processo de adoção em detrimento da atenção às famílias para que elas possam permanecer com suas crianças.

Realidade desconhecida
Outra percepção que a assistente social compartilhou com os ouvintes foi a de que, embora a institucionalização destas crianças tenha sido priorizada como forma de atenção, sua realidade é ainda desconhecida. Os dados desta realidade ficaram ocultos até meados dos anos 2000. “Não se sabia o que era um abrigo. Até hoje, para que as pessoas entendam de fato, precisamos utilizar a palavra ‘orfanato’”, alegou Rita.

No ano de 2003, duas importantes pesquisas iniciaram um processo de trazer luz à esta realidade. A primeira, em âmbito nacional, foi realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e mostrou que cerca de 20 mil crianças e adolescentes encontravam-se em abrigos. Destes, 58,5% eram meninos e 63,6% eram afrodescendentes. A maioria (86,7%) possuíam família, sendo que 58,2% mantinham vínculos com estas famílias. A segunda pesquisa foi coordenada pelo Núcleo da Criança e do Adolescente da PUC-SP (NCA) e foi realizada na cidade de São Paulo. Os número revelaram que 4.887 crianças e adolescentes estavam institucionalizados, 57% eram meninos, 52% de afrodescendentes, 74% tinham entre 7 e 18 anos, 67% possuíam família. Apenas 10% dos pais daquelas crianças tinham perdido o poder familiar e destes, 84% tinham entre 8 e 19 anos.

Embora estas pesquisas tenham apresentado dados muito relevantes, elas pareciam não fazer eco na sociedade brasileira. As pessoas parecem não querer ouvir e mantém-se distante destes dados, como se eles não tivessem o significado importante que têm. Para Rita, o que a sociedade não percebe é que “a adoção é solução para a minoria destas crianças, não é realidade para a maioria”. Por isso, de tempos em tempos novas propostas de leis são apresentadas com o mesmo intuito de “acelerar o processo de adoção no Brasil”. Foi o caso do PL 1756/2003, que depois de ampla resistência foi barrado e seu substitutivo acabou priorizando o Plano Nacional de Convivência Familiar. É este o caso das atuais propostas do Estatuto da Adoção e do Projeto de Lei 223/2017, de autoria do senador Aécio Neves, além de diversos outros projetos que tramitam no Congresso Nacional.


 





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