quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

II Congresso Brasileiro de Atuação Interdisciplinar nas Defensorias públicas

Desigualdade social, poder, fragmentação do saber e o diálogo interinstitucional permearam os debates

Nos dias 29 e 30 de novembro a AASP Brasil esteve na Universidade Uninove – Campos Vergueiro, em São Paulo para acompanhar o II Congresso Brasileiro de Atuação Interdisciplinar nas Defensorias públicas. Nossa segunda tesoureira, Fátima Zanoni Mastelini, e a conselheira fiscal Katiuscia Pereira, além de associados, participaram do evento que reuniu assistentes sociais, psicólogos e defensores públicos de diversos estados. O tema desta edição foi “Caminhos extrajudiciais, judiciais e intersetoriais para o acesso à justiça”.



“A importância deste congresso aponta para o fortalecimento da democratização do saber, algo tão difícil hoje, em contrapartida ao desmonte que sofremos e à toda forma autoritária”, afirmou Alderon Costa, ouvidor geral da Defensoria Pública de São Paulo. “Quando realizamos o primeiro congresso em 2015 um dos desafios era a manutenção deste espaço do congresso. E agora estamos na segunda edição”, pontuou Paula Rosa Cavalcante, psicóloga do Grupo de Apoio Interdisciplinar da Defensoria Pública de São Paulo. “Outra meta que tínhamos traçado na primeira edição era tentar a maior participação de defensores públicos. E hoje já temos defensores na plateia, na mesa, na organização do evento, na comissão avaliadora de trabalhos, na apresentação de trabalhos também houve aumento da participação de defensores”, disse. “Muita gente pergunta: como eu faço para trabalhar interdisciplinarmente? Qual é a medida? Quais são os instrumentos? Eu tenho pensado que se trata muito mais de uma postura do que de uma tecnologia”, expôs Melina Machado Miranda, assistente social Grupo de Apoio Interdisciplinar da Defensoria Pública de São Paulo. “Eu não sei se temos uma tecnologia de trabalho interdisciplinar, ele se dá no encontro e na postura de abertura de diálogo, para o outro. O trabalho interdisciplinar tem uma renúncia do ‘tudo saber’, precisamos renunciar e assumir que não sabemos tudo”.

A reinvenção dos fazeres no mundo jurídico: o diálogo entre as instituições e os anteparos no acesso aos direitos 



Esta mesa de debates teve como palestrantes Tereza Cristina Endo, psicóloga, assessora técnica da área de saúde mental, álcool e outras drogas da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e Marcos Rondon Silva, defensor público do Mato Grosso.

“Antigamente o termo usado nos trabalhos científicos era ‘exclusão’. A partir do desgaste do termo, começamos a perceber a necessidade de uma terminologia que expressasse mais essa permeabilidade. Então o termo que pensei foi ‘à margem’”, explicou Tereza. “Nós trabalhamos nesta linha fronteiriça em que as pessoas estão à margem. Isso dá a dinâmica de dentro e fora da exclusão”, completou. Para a psicóloga, estes anteparos têm uma finalidade, muitas vezes para deixar o outro mais à margem mesmo, coloca-lo em um lugar de não-pertencimento. “Mas podemos pensar também que margem pode ser um lugar seguro quando você está em uma profundeza de vastidão, de vulnerabilidade, angústia e desamparo”.

Tereza falou sobre o modelo de saúde mental, de atenção integral preconizado pelo SUS (Sistema Único de Saúde) e apontou momentos em que se vê anteparos e em que momentos se vê permeabilidade. “Pensando na prática diária, o que às vezes nos desloca daquele encontro com o outro, o que nos impede esta comunicação, quais são as barreiras que enfrentamos para esta permeabilidade?”, expôs. Ela fez uma análise das leis e portarias como anteparo, muitas vezes, de expulsão do usuário. A psicóloga trouxe também para os presentes alguns exemplos de modelos de atendimento, como por exemplo o Open Dialogue, adotado na Finlândia, no qual se evita a medicalização antes de três dias, a equipe se desloca para a casa do paciente e se baseia na ideia de equipe e pacientes sem fronteiras; o Drop In, utilizado em Londres, destinado à população em extrema vulnerabilidade e que consiste em um lugar com um sofá vermelho e a ideia é a de que qualquer pessoa poderia fazer este atendimento, não precisaria ser um especialista.

Rondon nomeou sua apresentação de “o direito ao grito”. O defensor trouxe aos presentes a história de Rosilda Pompeo de Oliveira, narrando-a por meio de passagens da literatura de Clarice Lispector, Richard Rorty, Júlio Cortázar e Herman Melville. Assim ele definiu: “Uma história-elaboração de um mal-estar, a partir do encontro entre Marcos, Rosilda e a literatura”. Rosilda foi presa em flagrante, no dia 08/04/2014, por tentativa de homicídio e resistência e foi morta em 26/05/2014, quando sua cela foi incendiada. Rondon intrigou-se com este fato: o que aconteceu nestes cinquenta dias?
Ao analisar os autos, o defensor descobriu que apesar de ter sido presa no dia 8 de abril, o interrogatório policial só se deu no dia 15. No dia 10 daquele mês, o juiz da 1ͣ  Vara Criminal decretou a prisão preventiva. No dia 25, o advogado entra com um pedido de liberdade provisória, alegando que sua paciente fora vitima de um surto psicótico, relatando que a abordagem policial teve origem na denúncia de vizinhos porque sua cliente, no surto, jogava objetos pessoais na rua. A abordagem foi despreparada e os policiais a agrediram ao invés de chamar o SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). No dia 8 de maio, o representante da 7ͣ Promotoria opinou pela ocorrência, em tese, de delito de lesão corporal e não homicídio e requereu a revogação da preventiva. No mesmo dia, o juiz declina da sua competência e deixa a análise do pedido de revogação preventiva, por ele decretada, para o juízo competente. No dia 13 Rosilda é denunciada por lesão corporal com resistência para o novo juízo. Na denúncia, o MP fazia uma ressalva pedindo revogação da preventiva e a aplicação de medida cautelar diversa da prisão. O pedido foi acatado pelo juiz da 4ͣ Vara Criminal.

Na documentação do presídio, Rondon notou não haver relato da presença de qualquer profissional da saúde, diante da ocorrência do incêndio que acabou por matar Rosilda. Não há nenhum indício de que ela tenha sido encaminhada para a enfermaria da unidade, ela foi deixada na quadra à espera de socorro. Os relatos dão conta de que os transtornos mentais eram do conhecimento de todos. O defensor diz que mantém viva esta trágica história, “porque ela é a história de tantos outros”. Comparando Rosilda à Macabea, personagem de a Hora da estrela, de Clarice Lispector, ele diz: “Rosilda é minha Macabea. O que ela diz sobre mim? O que ela revela sobre nós? O que ela revela sobre o Sistema de Justiça?”. 

Da fragmentação do saber às práticas interdisciplinares: estratégias de atuação em tempos de crise e retrocesso de direitos sociais



Maria Cecília de Araújo, professora de Direito da Fundação Getúlio Vargas e Edgar de Assis Carvalho, professor de Antropologia da PUC-SP, foram os debatedores desta mesa.

Maria Cecília trouxe para o debate a grande questão: Qual é o papel do ensino jurídico neste retrocesso? Ela relatou um experimento realizado com alunos, no qual se colocou em debate se o estado deveria fornecer um implante coclear a um garoto surdo e para sua surpresa boa parte da turma disse que não deveria. “Os alunos não têm a vivência da política pública na ponta, aceitam com naturalidade a tese de ineficiência para garantir um direito constitucionalmente garantido”, alegou. Ela conta que os saberes não-jurídicos que o aluno de Direito tem hoje contato na faculdade, quando tem, são de viés econômico, e dentro deste viés, de uma teoria econômica essencialmente liberal. “Eu tenho sentido que isso tem uma consequência muito perniciosa em vários aspectos e da própria construção que este aluno faz do que é acesso à justiça”, explicou. “O acesso à justiça deixou de ser uma ideia de efetivação de direitos para ser um problema: o sistema está sobrecarregado, o Judiciário é ativista demais e nós temos que pensar em soluções de eficiência tanto para a administração pública quanto para o Judiciário”, completou. Ela acredita que o ensino está muito calcado no discurso autoritário. “Eu costumo pedir a opinião dos meus alunos e eles se espantam e perguntam: ‘a gente pode achar alguma coisa?’ Nossos professores dizem que a gente não pode achar nada, o que importa é a doutrina e a jurisprudência’”.

Já Edgar trouxe um ponto polêmico para a discussão. Para ele, a interdisciplinaridade “não deu certo”. A partir do século XVII instaurou-se uma fragmentação dos saberes, cada um com a sua área, cada um com o seu saber, cada um com o seu poder e em meados da década de 1950 surgiu a questão da interdisciplinaridade. Pensou-se ser possível criar um diálogo inter disciplinas. “Hoje se fala muito em interdisciplinaridade, mas não se pratica a interdisciplinaridade. Por quê? Porque nenhum profissional quer abdicar da sua área do saber. E se não se abdica, não há possibilidade de diálogo”. Depois pensou-se em multididisciplinaridade, mas também não deu certo pelo mesmo motivo.

Então, passou-se a pensar em alguma forma de cognição para o plural que fosse além das disciplinas, que não abdicasse do poder disciplinar, mas que fosse além dele. Daí surge um novo termo: “transdisciplinaridade”, o qual, para o professor, é mais apropriado para os tempos sombrios atuais. “Tempos de crises por toda parte. Crise da política, crise do governo, crise do Estado, crise da sociedade, crise da universidade, que perdeu sua força criativa por ficar submetida à uma visão mercantilista dos órgão de financiamento que estão atrasados no tempo e no espaço”, pontuou.

O professor acredita que “não haverá reforma da educação, se não houver uma reforma dos educadores”. Ele explica que a origem grega da palavra “crise” tem um significado de “momento em que pode ocorrer um ponto de mutação.” Então, é preciso reeducar o indivíduo para que ele faça esta passagem. 

Desigualdade social, poder e Sistema de Justiça: assujeitamentos e resistências



Maria Cristina Vincentin, psicóloga e professora da PUC-SP, Flávio Américo Frasseto, defensor público da Defensoria Pública de São Paulo e Luciana Gross Cunha, professora de Direito da Fundação Getúlio Vargas, realizaram as palestras da última mesa do evento.  

Maria Cristina falou sobre a ânsia pela criminalização do conflito social tão presente em nossos dias, bem como sobre as alianças e composições entre a manutenção da desigualdade social e o Sistema de Justiça. “Não podemos deixar de problematizar as relações entre crime e condições de exploração do Capitalismo e prisão e modos de gestão dos despossuídos do Capitalismo globalizado”, alegou. Outro ponto trazido por ela muito presente nas práticas do Sistema de Justiça é a criminalização do modo de vida das pessoas pobres, “quando a pobreza se mistura às noções de risco e negligência, acionando um imaginário estigmatizante das famílias”. “Os parâmetros de normalidade do Sistema de Justiça não apenas desconhecem outras formas de vida, mas as desqualificam produzindo o reducionismo das leituras que se fazem desta situação e muitas vezes desconsiderando qualquer possibilidade de diálogo e inclusão dos modos de vida destes setores sociais”, analisou a professora.

Luciana versou sobre a incapacidade do operador do Direito em escutar. “Preparando a minha fala me lembrei de quando eu era estagiária da Procuradoria de Assistência de Assistência Judiciária e como naquele momento nada fazia sentido para mim a forma pela qual se ouvia, se atendia os assistidos, como eram chamadas as pessoas”, expôs. “Eu ouvia na faculdade que a Procuradoria era a face humana da advocacia E no dia a dia, na atuação, não era aquilo que eu via”. Para ela há a necessidade de um “diálogo horizontal” entre as diversas áreas do saber e os operadores do Direito são incapazes de estabelecer conexões horizontais com outras áreas do saber produzindo um conhecimento que ‘é um conhecimento principalmente coletivo e que não se constrói com uma conexão exclusivamente racional, mas que se constrói pela conexão afetiva e empática”, disse.

“A desigualdade social estrutural é um desequilíbrio da distribuição da riqueza produzida coletivamente. Aqueles que detêm a riqueza, detêm o poder, a capacidade de impor sua vontade sobre os outros”, assim Frasseto iniciou sua palestra. “Em países como o Brasil em que a concentração de riqueza e renda é alarmante, produz-se uma grande massa de despossuídos que por mecanismos sutis se acomodam ou são acomodados em condições de submissão, assujeitamento e subordinação às regras estabelecidas para que a condição de privilégios de uma minoria sobre a maioria se perpetue.” Esse quadro se mantém por uma tensão permanente que produz sazonalmente fissuras ou frestas por onde se deixa passar algumas concessões aos dominados ou despossuídos. Assim o defensor resumiu a conjuntura brasileira, cujo sistema permite alguns avanços para logo em seguida instalar os retrocessos, como estamos vivendo atualmente.

Troca de experiências, apresentação de painéis e apresentação de trabalhos
Além das grandes conferências, o evento também contou com uma mesa intitulada de “Panorama de práticas interdisciplinares em Defensorias Públicas Estaduais de todas as regiões do país”, na qual, assistentes sociais, psicólogos, defensores públicos e pedagogos falaram sobre as experiências, os trabalhos realizados e os desafios das Defensorias de suas regiões. Participaram do debate profissionais de São Paulo, Tocantins, Paraná, Distrito Federal, Mato Grosso e Bahia.



O evento também possibilitou que profissionais falassem das suas experiências por exposições de painéis e por apresentações de trabalho. A vice-presidente da AASP Brasil, Cíntia Aparecida da Silva, apresentou seu trabalho junto com a assistente social da Defensoria Pública de São Paulo e nossa associada, Daniela Augusto e com o psicólogo da Defensoria Pública de São Paulo, João Bosco. Cíntia é assistente social do Ministério Público de São Paulo. Com o tema “Desafios da atuação interdisciplinar e interinstitucional: O trabalho do CAM (Centro de Atendimento Multidisciplinar da Defensoria Pública de São Paulo) e do NAT ( Núcleo de Assessoria Técnica Psicossocial do MP-SP) na defesa do acesso e permanência do adolescente em conflito com a lei à educação”, os três profissionais relataram a experiência e desafios do trabalho que desenvolvem conjuntamente na tentativa de garantir os direitos de adolescentes que comentem atos infracionais. Diversos trabalhos com temas variados foram apresentados durante os dois dias de evento.

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